A realidade

Despertei ontem com o vibrar do telefone do meu marido. Mesmo depois de cotoveladas e empurra-lo ele não despertou. Decidi ver quem estava a ligar, mas o vibrar parou. Era a filha dele. Segundos depois, caiu-me o queixo ao ler a mensagem de SMS dela que dizia:
"Pai, essas festividades são para mim e para vocês (tu e a mãe). Se ela vier não será a mesma coisa."
Uau! Hoje não passo do "ela." Quando e como é que mudaram as coisas? Pensei
Estamos casados há 24 anos, juntos há 26. A filha dele, a Dânela, veio viver connosco seis meses após o nosso casamento. Como tinhas apenas 15 meses, criei-a, até 10 anos atrás, como minha, sem a intervenção ou intromissão da mãe. A mãe apareceu no inicio da adolescência da Dânela e ainda notou-se reticente na sua aproximação. No fim de um ano, a Dânela mudou-se com a mãe que começara, na altura, uma relação nova e mudou por completo a forma como interagia com a filha.
Foi difícil prà mim. Não cheguei a fazer filhos meus, pois dediquei a minha vida a ela. Precisou da minha completa atenção, minha paciência, meu amor e carinho. Era, e é ainda, a minha menina.
Mesmo depois de se ter mudando com a mãe mantivemos contacto constante. Ela no principio ligava-me diariamente e passava os fins de semana connosco de duas em duas semanas. Ao entrar para a universidade a distância aumentou e os telefonemas quase não aconteciam, caso eu não pegasse no telefone.
Quando foi do noivado dela, eu fiquei a conhecer pelo pai. Não me importei nem de me terem excluído dos preparativos do casamento. Mas essa mensagem foi um golpe.
Saí da cama e fui para o quarto dela, aonde ainda estavam muitas das memórias da infância dela. Peguei na fita de ginastica que ela usava quando estivesse nervosa, triste, ou zangada, e aprendemos as duas a dançar para ajudar a resolver esses sentimentos. Sentei-me na cadeira de fitas à janela e caíram-me lágrimas.
Mas ela é minha filha, pensei. Eu criei-a. Dei tudo de mim e o meu amor, quando a mãe nem um telefone dava. Sentei-me ali noites sem conta aterrorizada quando a minha Dânela tivesse doente, quando precisasse de companhia para estudar, quando quisesse chorar e alguém que a ouvisse. Ali sentei-me prà brincar, mas hoje para chorar.
A minha menina não é minha; nunca foi minha. A minha pequena cresceu, vai casar-se e não me quer lá. Eu farei a sua vontade. Mas amar-lhe-ei, ainda que com o coração partido, o mesmo com que me dei ao luxo de aprender a amar-la.
Fechei os olhos, juntei as mãos e orei... Pela felicidade dela, pela saúde dela, pela perspectiva de uma vida de mulher, para que tenha filhos e que o meu carinho e dedicação lhe venha a servir de orientação nessa vida como mulher. Orei para que o meu coração a perdoasse. O momento em que terminei de o fazer, o meu marido abriu a porta e entrou para o quarto.
-Bateu saudades da nossa menina?
- Muitas... Pude responder.
- Vamos vê-la no dia dela.
- Eu não me tenho sentido bem, amor, menti. Fui ao Doctor ontem e ele disse-me que descanse, que não perca noites.
Ele acreditou, ao menos pareceu. Esse ano foi dificil prà mim em termos de saúde, por isso todo o repouso recomendado é respeitado. Mas, hoje preciso de recuperar desse embate, o que ele não precisa saber.
Ele agarrou-me a mão, levou-me até o nosso quarto e cuidou de mim, como sempre o faz...

Comments

  1. Querida Lwsinha não tenho palavras pra descrever as profundidades desta crónica.

    Sente-se o sofrer do "eu" principal.A forma como descreveste cada acto rouba a atenção do leitor e o prende no desenvolver da história, e se tal for como eu se entristece pela maneira que o episódio se deu a findar quando já desenhava um final meu pra situação (risos). Ao mesmo tempo que tudo isso é verdadeiramente triste, é lindo. Acontece, aconteceu e provavelmente acontecerá. Infelizmente tenho dessas lembranças, as vezes até me encho de raiva quando vejo minha mãe enlagrimada por aquelas "pestes" que parecem não merecer parte do que ela faz, mas ninguém melhor do ela pra definir esse enorme amor. Ninguém entende. Pelo menos agora faço ideia, e tento aceitar.

    Enfim, (não quero fazer aqui mais um texto. FANTÁSTICO. AMEI!

    Bjo e tenha um 2013 único, cheio de saúde pra ti e tua família.

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    1. Infelizmente isso acontece mais do que se fala... Posso apenas imaginar como essa mãe (mesmo que madrasta) se sinta ao enfrentar tal punhalada. Acredito que até o virar as costas de quem não criamos, mas apenas albergamos temporariamente, venha a ferir a quem se dedique a abrir as suas portas e oferecer o seu carinho/tecto.

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    2. é verdade mesmo. Mas a vida tem dessas "anomalias" (infelizmente)

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